Por Atílio A Borón
Quando passa meio século sobre a eleição de Salvador Allende, há em primeiro lugar que prestar homenagem a um homem de excepcional integridade pessoal e política, inteiramente devotado à causa do seu povo. O breve governo da Unidade Popular no Chile, juntamente com a Revolução cubana, alargou o horizonte de esperança da luta dos povos da América Latina. O seu trágico fim e a criminosa conspiração imperialista que conduziu a ele confirma uma regra que não admite excepções: a emancipação e o progresso exigem, onde quer que seja, o poder do povo, a perspectiva do socialismo, e a combativa mobilização anti-imperialista do povo inteiro.
Com a sua obra de governo e heroico sacrifício, Allende deixou um legado extraordinário aos povos de Nossa América, sem o qual é impossível compreender o caminho que os povos dessas latitudes começariam a percorrer no final do século passado e que culminou com a derrota do principal projecto geopolítico e estratégico dos Estados Unidos para a região, o ALCA, em Mar del Plata em 2005.
Há datas que assinalam marcos indeléveis na história da Nossa América. Hoje, 4 de Setembro, é um desses dias. Como 1 de Janeiro de 1959, triunfo da Revolução Cubana; ou o 13 de Abril de 2002, quando o povo venezuelano saiu às ruas e reinstalou no Palácio Miraflores um Hugo Chávez prisioneiro dos golpistas; ou o 17 de Outubro de 1945, quando as massas populares argentinas conseguiram a libertação do Coronel Perón e começaram a escrever uma nova página na história nacional. A data de hoje, objecto deste escrito, enquadra-se nessa selecta categoria de acontecimentos épicos na América Latina. Em 1970 Salvador Allende impunha-se nas eleições presidenciais chilenas, obtendo a primeira minoria e derrotando o candidato da direita, Jorge Alessandri, e relegando para o terceiro lugar Radomiro Tomic, da Democracia Cristã.
A eleição de 1970 foi a quarta eleição presidencial em que Allende concorreu: em 1952 tinha feito a sua primeira incursão, colhendo pouco mais de 5 por cento dos votos, muito longe do vencedor, Carlos Ibáñez del Campo, que ganhou com quase 47 por cento dos votos. Não desanimou e, em 1958, como candidato da FRAP, a Frente de Acção Popular, uma aliança dos partidos socialista e comunista, recebe 29 por cento dos votos e esteve perto de arrebatar a vitória a Jorge Alessandri, que recebeu 32 por cento dos votos.
Já naquele momento começaram a soar todos os alarmes no Departamento de Estado, como evidenciado pelo crescente tráfego de memorandos e telegramas relacionados com Allende e o futuro do Chile que saturava os canais de comunicação entre Santiago e Washington. O triunfo da Revolução Cubana projetou o FRAP como uma inesperada ameaça não só para o Chile mas para a região, porque Salvador Allende aparecia aos olhos dos altos funcionários em Washington – a Casa Branca, o Departamento de Estado e a CIA - como um “extremista de esquerda” não diferente de Fidel Castro e tão prejudicial para os interesses dos Estados Unidos como o cubano.
À medida que se aproximava a data das cruciais eleições presidenciais de 1964, o envolvimento dos Estados Unidos na política chilena acentuou-se exponencialmente. Relatórios anteriores de várias missões que visitaram aquele país coincidiam em que existia uma ambivalência preocupante na opinião pública: uma certa admiração pelo “estilo de vida americano” e o reconhecimento do papel desempenhado pelas empresas norte-americanas sediadas no Chile. Mas ao mesmo tempo notavam, por trás desta aparente simpatia, uma hostilidade latente que, associada com a marcante popularidade de Fidel Castro e da Revolução Cubana, poderia levar o país sul-americano a um caminho revolucionário que Washington não estava disposto a tolerar. Por isso foi descarado, torrencial e multifacetado o apoio à candidatura da Democracia Cristã. Não só em termos financeiros (para apoiar a campanha de Eduardo Frei), mas também em termos diplomáticos, culturais e comunicacionais, apelando aos piores truques de propaganda para estigmatizar Allende e a FRAP e exaltar o futuro governo democrata-cristão como uma promissora “Revolução em Liberdade”, por contraposição ao tão odiado (por Washington, obviamente) processo revolucionário cubano.
Um memorando enviado por Gordon Chase a Mc.George Bundy, Conselheiro de Segurança Nacional do Presidente Lyndon B. Johnson e datado de 19 de Março de 1964, revela intranquilidade que a próxima eleição presidencial chilena despertava em Washington. [] Chase sugeriu que nessa conjuntura se abriam quatro possíveis cenários: a) uma derrota de Allende; b) uma vitória do candidato da FRAP mas sem obter maioria absoluta, o que permitiria manobrar no Plenário do Congresso para eleger Frei; c) Allende poderia ser derrubado por um golpe militar, mas isso teria que acontecer antes de ele tomar posse porque depois seria muito mais difícil; d) Vitória de Allende. Ante essa infeliz contingência, Chase escrevia: “estaríamos em apuros porque ele nacionalizaria as minas de cobre e juntar-se-ia ao bloco soviético em busca de ajuda financeira” e concluía que “devemos fazer todo o possível para que o povo apoie Frei”. De facto, foi o que fizeram os Estados Unidos e se concretizou a tão esperada vitória de Frei (56 por cento dos votos) sobre Allende, que apesar da “campanha de terror” de que foi vítima obteve 39 por cento dos votos.
A vitória da democracia cristã foi saudada em Washington com grande alívio e como um golpe definitivo não só contra Allende e seus companheiros, mas como a ratificação do isolamento continental da Revolução Cubana. Mas a tão elogiada “Revolução em Liberdade” terminou num fracasso retumbante, deixando o Palácio de La Moneda com um saldo de pouco mais de trinta militantes ou manifestantes populares fuzilados pelas forças de segurança. Fracasso económico, frustração política, retrocesso na batalha cultural a tal ponto que o candidato do partido no poder, Radomiro Tomic, teve que saltar para a arena eleitoral levantando o slogan de um “caminho não capitalista para o desenvolvimento” para conter a adesão crescente que as propostas socialistas da Unidade Popular exerciam sobre o eleitorado chileno, e captar parte daqueles que poderiam voltar-se a favor da Unidade Popular na disputa de 4 de Setembro. Mas nesta quarta tentativa os resultados sorriram a Allende, que apesar da fenomenal campanha de desprestígio e difamações lançada contra
ele conseguiu prevalecer, embora de forma muito apertada, sobre o candidato da direita Jorge Alessandri: 36,2 por cento dos votos contra 34,9 do seu contendor. Estava tudo agora nas mãos do Plenário do Congresso porque, não tendo sido alcançada a maioria absoluta, era necessário que fosse decidido entre os dois candidatos que obtiveram o maior número de votos. As alternativas manejadas por Washington foram as que Chase havia concebido para a eleição anterior, e com o triunfo de Allende agora restavam apenas duas cartas na mesa: o golpe militar preventivo, daí o assassínio do general constitucionalista René Schneider, ou a manipulação dos legisladores do Plenário do Congresso (apelando à persuasão e, caso esta não desse bons resultados, ao suborno e à extorsão) para que quebrassem a tradição e nomeassem Alessandri como presidente. Ambos os planos fracassaram e em 4 de Novembro de 1970 o candidato da Unidade Popular assumiu a presidência da república. Consagrava-se assim como o primeiro presidente marxista eleito no quadro da democracia burguesa e o primeiro a tentar avançar na construção do socialismo mediante uma via pacífica, projecto que foi violentamente sabotado e destruído pelo imperialismo e seus peões locais.
Apesar destes enormes obstáculos, o inacabado governo de Allende abriu uma brecha que depois, trinta anos mais tarde, outros começariam a percorrer. Foi um governo sitiado desde antes de entrar em La Moneda, tendo que enfrentar um ataque brutal “da embaixada” e seus infames aliados locais: toda a direita, a velha e a nova (a Democracia Cristã), as corporações empresariais, as grandes empresas e seus meios de comunicação, a hierarquia eclesiástica e um sector das camadas médias, vítimas indefesas de um terrorismo mediático sem precedentes na América Latina. Apesar disso, conseguiu avançar significativamente no fortalecimento da intervenção do Estado e na planificação da economia. Conseguiu nacionalizar o cobre por meio de uma lei aprovada quase sem oposição no Congresso, pondo fim ao fenomenal saque praticado pelas empresas norte-americanas com o consentimento dos governos anteriores. Por exemplo, com um investimento inicial de cerca de 30 milhões de dólares ao cabo de 42 anos, a Anaconda e a Kennecott enviaram para o exterior lucros de mais de 4.000 milhões de dólares. Um escândalo! Também colocou o carvão, o salitre e o ferro sob controlo estatal, recuperando a estratégica siderurgia de Huachipato; acelerou a reforma agrária concedendo terras a cerca de 200.000 camponeses em quase 4.500 propriedades e nacionalizou quase todo o sistema financeiro, a banca privada e os seguros, adquirindo em condições vantajosas para seu país a maioria das acções dos seus principais componentes. Também nacionalizou a corrupta International Telegraph and Telephone (IT&T), que detinha o monopólio das comunicações e que antes da eleição de Allende tinha organizado e financiado, juntamente com a CIA, uma campanha terrorista para frustrar a tomada de posse do presidente socialista []. Estas políticas resultaram na criação de uma “área de propriedade social” onde as principais empresas que condicionavam o desenvolvimento económico e social do Chile (como o comércio externo; a produção e distribuição de energia eléctrica; o transporte ferroviário, aéreo e marítimo; as comunicações; a produção, refinação e distribuição de petróleo e seus derivados; a siderurgia, o cimento, a petroquímica e química pesada, a celulose e o papel) passaram a estar controladas ou, pelo menos, fortemente reguladas pelo Estado. Todas essas impressionantes conquistas foram realizadas em simultâneo com um programa alimentar, onde se destacava a distribuição de meio litro de leite para as crianças. Promoveu a saúde e a educação em todos os níveis, democratizou o acesso à universidade e lançou um ambicioso programa cultural por meio de uma editora estatal, Quimantú, que resultou, entre outras coisas, na publicação de milhões de livros que foram distribuídos gratuitamente ou a preços irrisórios.
Com a sua obra de governo e heroico sacrifício, Allende deixou um legado extraordinário aos povos de Nossa América, sem o qual é impossível compreender o caminho que os povos dessas latitudes começariam a percorrer no final do século passado e que culminou com a derrota do principal projecto geopolítico e estratégico dos Estados Unidos para a região, o ALCA, em Mar del Plata em 2005. Allende foi, portanto, o grande precursor do ciclo progressista e de esquerda que sacudiu a América Latina no início deste século.
Ele também foi um anti-imperialista sem falhas e um amigo incondicional de Fidel, do Che e da Revolução Cubana quando tal coisa equivalia a um suicídio político e o convertia em carne de canhão para os sicário mediáticos teleguiados a partir dos EUA. Mas Allende, um homem de uma integridade pessoal e política exemplares, superou tão adversas condições e abriu essa brecha que levaria às “grandes alamedas” onde as mulheres e homens livres da Nossa América marchariam, pagando com a vida a sua lealdade às grandes bandeiras do socialismo, da democracia e do anti-imperialismo. Hoje, comemorando o 50º aniversário daquela vitória, merece que o recordemos com a gratidão devida aos Pais fundadores da Pátria Grande e a quantos inauguraram a nova etapa que conduz à Segunda e definitiva Independência dos nossos povos.
Fonte: odiario.info |