Assinala-se na próxima segunda-feira, 27 de Janeiro, 75 anos sobre a libertação do campo de extermínio nazi de Auschwitz. Do muito que já se disse sobre o assunto, e do que seguramente se dirá nos próximos dias nos meios de comunicação social dominados pelo grande capital, não sobressai devidamente a identidade do libertador: a União Soviética e o seu Exército Vermelho.
Só quem andar distraído poderá achar estranho semelhante desvalorização ou mesmo ocultação, tal a dimensão e descaramento das operações de reescrita da História que marcam o nosso tempo. Elas são parte integrante da ofensiva ideológica que acompanha – e enquadra – o brutal e multifacetado ataque do imperialismo contra os direitos dos trabalhadores e dos povos.
A História, é sabido, constitui para as forças revolucionárias e progressistas de todas as épocas uma útil fonte de inspiração e um imprescindível instrumento de compreensão e transformação do mundo, com base nas leis do desenvolvimento social. Inversamente, o desconhecimento ou incompreensão da História facilita a penetração entre as massas de concepções e práticas contrárias aos seus próprios interesses. A ascensão, um pouco por todo o mundo, de forças de extrema-direita e de carácter fascizante (quando não mesmo neonazi) é disto exemplo maior, mas está longe de ser o único.
A própria crítica dos partidos e da política, a desvalorização dos sindicatos e da luta organizada, a secundarização e a negação da luta de classes em prejuízo de várias causas identitárias, devidamente separadas e descontextualizadas, o ataque às liberdades e à democracia inserem-se, em grande medida, na premeditada promoção de uma insuficiente (e deficiente) apreensão das lições do passado.
É precisamente por estar plenamente consciente da importância da História que o imperialismo dedica especial atenção ao que dela pretende que se registe e à forma como o faz, recorrendo aos extraordinários meios que tem hoje à sua disposição – dos livros de História aos documentários, dos currículos escolares às mega-produções de Hollywood.
A visão promovida pelo imperialismo sobre a Segunda Guerra Mundial é, a este propósito, paradigmática: o papel determinante da União Soviética e dos comunistas na derrota do nazi-fascismo é apagado, ao mesmo tempo que se sobrevaloriza o contributo de outros; a natureza de classe do fascismo é omitida, assim como a cumplicidade de que o nazismo alemão beneficiou por parte das potências capitalistas como a Grã-Bretanha, França ou Estados Unidos; sobre as impressionantes – e, para a maioria da população mundial, inéditas – conquistas alcançadas no pós-guerra cai hoje um denso manto de obscuridade.
Poderia o capitalismo monopolista, com suas ramificações, permitir que se soubesse que o fascismo é a sua própria ditadura terrorista? Ou que a guerra não resultou da «loucura» de um qualquer Hitler de serviço, mas da própria natureza do capitalismo na sua fase imperialista? Ou que foram os comunistas e o movimento operário e popular os principais obreiros da vitória sobre o nazi-fascismo?
Poderia permitir que os trabalhadores e os povos tivessem confiança na sua própria luta, capacidade de resistência e força transformadora?
Para lá de Hollywood
Por mais cinematográfica que possa ser, a versão repetida até ao absurdo que apresenta o Dia D como a chave da vitória sobre o nazi-fascismo e os aliados ocidentais como os seus principais protagonistas não tem qualquer fundamento. Quando as forças anglo-americanas desembarcam na Normandia, no início de Junho de 1944 (abrindo finalmente a segunda frente, há muito prometida), já as hordas hitlerianas batiam em retirada, somando derrotas atrás de derrotas às mãos do Exército Vermelho e das forças de resistência popular.
Aliás, depois de ocuparem quase toda a Europa sem grande dificuldade, foi na União Soviética que os exércitos nazi-fascistas se depararam pela primeira vez com uma oposição digna nesse nome: só no primeiro mês de invasão, mais de 110 mil soldados alemães tombaram e as unidades de tanques e motorizadas reduziram-se quase a metade. Era o fim da guerra-relâmpago (Blitzkrieg). Daqui por diante o avanço continuaria por alguns meses, mas foi penoso e lento…
A primeira derrota na guerra sofreram-na os nazi-fascistas às portas de Moscovo: quando a batalha pela capital terminou, em Abril de 1942, tinham perdido na União Soviética um milhão e meio de homens, cinco vezes mais do que na invasão e ocupação de 11 países europeus. No final da guerra o balanço não era menos revelador: os nazi-fascistas perderam nos combates contra a União Soviética 80 por cento dos seus homens e na Frente Oriental foram capturadas, derrotadas ou esmagadas 607 das suas divisões, mais do triplo do que sucedeu nas frentes do Norte de África, da Itália e da Europa Ocidental, todas juntas.
Foi igualmente na União Soviética que se travaram as batalhas decisivas, que inverteram o rumo da guerra. A permanente resistência em todas e a cada uma das cidades, vilas e aldeias ocupadas; a heróica defesa de Leninegrado (sitiada durante 900 dias e nunca tomada) e a ruptura definitiva do cerco, em Janeiro de 1944; a vitória soviética em Stalinegrado, em Fevereiro de 1943, onde os nazis perderam cerca de um quarto do total forças imensas que concentraram na agressão à URSS, na sequência de encarniçados combates rua a rua e casa a casa – foram momentos decisivos para o desfecho da guerra. A partir da derrota na imensa batalha de Kursk, em Agosto de 1943, o comando nazi perdeu a iniciativa da guerra e nunca mais foi capaz de a retomar, até à sua derrota final, em Berlim, em Maio de 1945.
Entre as batalhas travadas em território soviético e a vitória definitiva, na capital do Reich, o Exército Vermelho e as forças de resistência patrióticas de várias nacionalidades libertaram a um ritmo avassalador 113 milhões de pessoas de 11 países europeus ocupados pelos nazi-fascistas. Foi precisamente neste processo que a 1.ª e a 4.ª divisões da frente ucraniana, comandadas respectivamente pelos generais Koniev e Petrov, chegaram às imediações do campo de concentração de Auschwitz, em Janeiro de 1945.
Teses insustentáveis
Ao pretender reescrever a História, o imperialismo não procura apenas apagar o papel decisivo da União Soviética na derrota do nazi-fascismo e o alto preço que por tal pagou – mais de 20 milhões de mortos. Numa recente resolução do Parlamento Europeu (aprovada com os votos dos deputados portugueses do CDS, PSD, PS e PAN), equipara-se mesmo o nazi-fascismo ao comunismo, ocultando-se que um e outro são opostos nos princípios e nas práticas e que o primeiro foi derrotado em 1945 graças ao contributo determinante dos comunistas.
A resolução tem objectivos mais amplos do que a falsificação da História, mas é dela que parte para construir uma narrativa que aponta à criminalização de todos os que denunciam a natureza exploradora, opressora, agressiva e predadora do capitalismo, particularmente os que protagonizam o projecto e a luta pela sua superação revolucionária. Para lá do muito que oculta, escamoteia que o pacto de não-agressão assinado em Agosto de 1939 entre a União Soviética e a Alemanha nazi teve como propósito fundamental ganhar tempo face à certa agressão nazi-fascista contra a URSS.
Nada diz, porém, sobre as inúmeras propostas feitas pelos soviéticos desde 1933 (ano em que Hitler chegou ao poder na Alemanha) para a criação de um sistema de segurança colectivo na Europa, destinado a prevenir a ameaça de agressão nazi-fascista, nunca concretizado devido à recusa de britânicos e franceses. Da mesma forma que cala a cumplicidade de Grã-Bretanha e França na ascensão do nazi-fascismo e na sua expansão para Leste: pese embora a oposição e propostas soviéticas em sentido contrário, estes dois estados consentiram a militarização alemã (1936), a intervenção de Hitler e Mussolini contra a República espanhola (1937-39) ou o desmembramento e ocupação da Checoslováquia.
Só quando era já evidente que as autoridades britânicas e francesas não só recusavam qualquer coligação antifascista como procuravam empurrar as hordas hitlerianas para Leste é que a União Soviética se decidiu, em Agosto de 1939, a subscrever o tratado de não-agressão com a Alemanha. Com ele, ganhou quase dois anos para se preparar melhor, no plano militar, para a invasão que inevitavelmente ocorreria. Quanto à suposta «partilha» da Polónia entre soviéticos e alemães, ela simplesmente não existiu, já que os territórios ocupados pela URSS foram os que o imperialismo lhe tinha subtraído com o Tratado de Brest-Litovsk: a Ucrânia Ocidental e parte da Bielorrússia.
O extermínio, a escravatura e quem se escondeu por detrás do nazismo
A libertação pelo Exército Vermelho do complexo de campos de concentração de Auschwitz (como, antes, os de Treblinka ou de Maidanek) revelou ao mundo a tenebrosa máquina de morte do nazi-fascismo. Só nos campos de extermínio terão sido assassinadas 11 milhões de pessoas: judeus, ciganos, eslavos, deficientes, comunistas, sindicalistas e outros democratas e resistentes anti-fascistas. Morreram nas câmaras de gás e no pelotão de fuzilamento; na tarimba, famintos, doentes e exaustos, ou na marquesa de um qualquer «médico» que neles fez experiências tenebrosas.
Na obra A Rússia na Guerra (publicada em Portugal pela Europa-América), o jornalista britânico Alexander Werth relata as suas impressões ao entrar no campo de Maidanek, pouco depois de este ter sido localizado e libertado pelo Exército Vermelho: as câmaras de gás e os fornos crematórios, os montes de cinzas humanas acumuladas. «Incrível», assume, lembrando que o primeiro relatório que enviou para a BBC sobre esta tenebrosa realidade não foi publicado, pois a direcção considerava que o seu conteúdo era «propaganda russa». Só mais tarde, depois de terem sido descobertos pelas forças anglo-americanas os campos de concentração de Buchenwald, Dachau e Belsen «é que se convenceu que Maidanek e Auschwitz eram autênticos».
No funcionamento dos campos de extermínio como de toda a sua máquina de opressão e guerra, o nazi-fascismo contou com o empenhado apoio de alguns dos mais importantes grupos económicos e financeiros de então (e, alguns, de hoje), que o equiparam e beneficiaram do trabalho escravo dos prisioneiros: Thyssen, Krupp, Bayer, Volkswagen, IBM e Hugo Boss são apenas alguns deles. O fascismo, em todas as suas expressões, é a ditadura terrorista dos monopólios – e este é aspecto essencial que a actual ofensiva ideológica do capitalismo pretende esconder.
Fonte: odiario.info
*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2408, 23.01.2020 |