A editora Elsinor promove o livro “Rapazes de Zinco, A geração Soviética Caída na Guerra do Afeganistão” afirmando que é um livro que «oferece uma visão única e poderosa da realidade da Guerra do Afeganistão». Mas o que efectivamente oferece é deturpação histórica e reaccionarismo anti-soviético.
Os livros que conheço de Svetlana Alexievich são todos marcados por um anti sovietismo inocultável.
O último – Rapazes de Zinco, A geração Soviética Caída na Guerra do Afeganistão* - é de longe o mais reacionário.
A editora Elsinor colaborou, convidando José Milhazes, um profissional do anticomunismo, para escrever o prefácio da tradução portuguesa.
DETURPAÇÃO DA HISTÓRIA
A extensa narrativa da laureada escritora, Premio Nobel de Literatura, configura uma agressão transparente à Historia, montada através de um conjunto de documentos por ela selecionados. Um trabalho minucioso que lhe exigiu centenas de horas de trabalho e um esforço enorme.
A autora informa que os depoimentos que publicou são de homens e mulheres da URSS que participaram na guerra do Afeganistão ou de familiares de militares que ali morreram.
Uma peculiaridade: nesses depoimentos não consta o nome dos entrevistados, mas o posto e tarefa militar ou a relação familiar com mães ou esposas daqueles que morreram na guerra.
Svetlana esclarece que omitiu a identificação de oficiais, soldados e parentela.
«No livro – revela — não guardei nomes verdadeiros. Uns pediram o segredo da confissão, outros querem esquecer tudo. Pode ser que um dia os meus heróis queiram ser conhecidos».
A explicação não é de molde a convencer os leitores; o carater anonimo dos depoimentos retira-lhes credibilidade.
ESTÓRIAS MEDONHAS
A grande maioria dos depoimentos que Svetlana afirma ter escutado e gravado nas suas entrevistas é medonha, assustadora. A serem autênticos, os oficiais e soldados que falaram com a escritora seriam responsáveis por crimes monstruosos e as forças do Exercito Soviético que participaram na guerra do Afeganistão uma horda de assassinos, drogados, sádicos, violadores, ladrões, comparável às SS de Hitler.
Para que os leitores possam ter uma ideia das declarações supostamente gravadas por Svetlana transcrevo breves excertos do livro:
- «Ouvi vários homens dizerem: matar pode dar gosto; matar é um prazer (…) Eram alimentados a carne com vermes, peixe que sabia a ferrugem. Tenhamos todos escorbuto.»
- Enfermeira
- «Trouxeram do “verde malaquita” um tenente sem braços nem pernas. E sem nada masculino.»
- Conselheiro militar
- «As seringas deixavam de ser esterilizadas. Metade delas não aspirava a solução, tinham defeito.»
- Sargento-ajudante sanitário
- «…vi como se compram aos médicos com, cheques dois copos de urina de um doente com icterícia. Para a beber. Para adoecer.»
- praça, operador de comunicações
- «Depois do combate pende de uma árvore uma orelha humana …um olho humano vai deslizando por um rosto humano.»
- Comandante de pelotão de infantaria.
- «Trouxeram dois prisioneiros. Era necessário matar um deles porque no helicóptero não havia lugar para dois, mas precisávamos de um deles para conseguir informações.»
- praça, atirador de lança granadas
- «Por que é que os jovens de dezoito ou dezanove anos matam com mais facilidade do que, digamos, os de trinta.»
- major de um regimento de artilharia
- «Eu não era capaz de entrar na morgue. Levavam para lá carne humana misturada com terá. E debaixo da cama das raparigas também havia carne»
- médica bacteriologista
- «Quem lhe vai mostrar um fio com orelhas humanas secas? … Troféus de guerra.»
- Primeiro-tenente de artilharia.
- «Traziam feridos para a União e descarregavam-nos traseiras do aeroporto para que povo não visse, não soubesse.»
- Major comandante de fuzileiros de montanha
- «Não contei o entusiasmo dos tripulantes de helicóptero quando lançam bombas. Vangloriavam-se: como é belo o espetáculo do kichtak (aldeia afegã) em chamas.»
- Sargento batedor
- «Tinha comigo um canivete que servia para abrir latas de conserva. Um canivete vulgar. Ele já estava no chão… Puxei-lhe a barba e cortei-lhe a garganta.»
- Praça, batedor
Eis uma amostra do género de depoimentos reunidos por Svetlana Alexievich em mais de duzentas páginas do seu livro.
O OUTRO AFEGANISTÃO
A vida permitiu- me como jornalista visitar repetidamente o Afeganistão, de 1980 a 1989, durante a guerra.
Além de Kabul, estive no norte em Mazar-i-Charif e Balkh, em Jalalabad no Sul, percorri a planície que finda nas montanhas em que se abre o famoso desfiladeiro de Kyber, atravessei numa coluna militar o túnel de Salang na chamada estrada da vida que liga a capital à fronteira do Usbequistão. Corri pelo país de avião, de carro e em veículos militares soviéticos e afegãos.
Falei com centenas de afegãos, militares, intelectuais, operários. No exército havia muitas mulheres combatentes, na universidade as mulheres não escondiam o rosto.
Desse Afeganistão revolucionário não fala Svetlana. Mas ele existiu, foi real e durante uma década o seu exército resistiu vitoriosamente aos bandos armados das Sete Organizações de Peshawar, armadas e financiadas pelos Estados Unidos e treinadas pela CIA. Os mujahedines, qualificados de «combatentes da liberdade», não tomaram uma só capital de província nesse período. A Revolução não foi vencida pelas armas. Acabou quando Gorbatchov, de acordo com Washington, pôs fim à entrega de trigo e petróleo ao governo de Kabul. Sem pão e combustível, a luta tornou-se impossível.
Visitei quarteis soviéticos nas montanhas. Conversei com oficiais e soldados nos fortins da estrada de Salang. Nessas instalações militares não identifiquei indícios de indisciplina, violência, sujeira. Escrevi muito sobre esse Afeganistão, o real, um pais e uma sociedade nas antípodas do Afeganistão imaginário de Svetlana Alexievich.
Pelo Afeganistão passaram, aproximadamente 500 mil militares soviéticos. O total de mortos rondou os 15 000. A URSS tinha na época 290 milhões de habitantes. A percentagem de mortos (0,005%) foi portanto muitíssimo inferior à dos portugueses (0,08%) que morreram nas três guerras coloniais (8300). Registo isso porque ajuda a compreender o panorama esboçado por Svetlana numa obra de falsificação da História.
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As últimas 70 páginas dos Rapazes de Zinco - referência aos caixões metálicos em que chegavam os mortos na guerra afegã - são ocupadas por documentação relacionada com as acções judiciais por calúnia e difamação instauradas contra Svetlana Alexievich por militares russos e familiares dos mortos soviéticos no Afeganistão.
Ignoro se esses textos foram introduzidos a pedido da escritora ou por iniciativa da editora.
Incluem parte do acórdão do Tribunal de Minsk, o extenso discurso que Svetlana ali pronunciou, depoimentos na audiência que acusam a escritora ou a defendem e cartas de personalidades e organizações, a maioria semeadas de elogios à autora de Os Rapazes de Zinco.
A sentença absolve Svetlana numa dos processos, condena-a parcialmente noutro. Não há referências a mais duas acções judiciais também instauradas contra Svetlana.___
*Svetlana Alexievich, Rapazes de Zinco - A geração soviética caída na guerra do Afeganistão,
Editora Elsinore, 343 páginas, Amadora, Março de 2017 |