Texto de Lygia Prestes (Resumo de Anita L. Prestes)
Leocádia Felizardo Prestes nasceu no dia 11 de maio de 1874, em Porto Alegre (RS). Filha de família de posses, educada segundo os moldes tradicionais da época, Leocádia falava vários idiomas, era pianista, estudou pintura, canto, declamação. No entanto, ela gostaria de ser útil à sociedade e, ainda adolescente, manifestou o desejo de ser professora pública, o que não pôde ser concretizado devido aos preconceitos da época. A política e os problemas sociais muito lhe interessavam, sendo leitora apaixonada dos jornais da Corte, fato inusitado entre as jovens do seu tempo.
Em 1896, casou-se com o capitão Antônio Pereira Prestes, engenheiro militar, ex-aluno de Benjamim Constant, na Escola Militar do Rio de Janeiro, que havia participado, ainda cadete, da proclamação da República. Homem de vasta cultura, muito contribuiu para que Leocádia ampliasse seus conhecimentos e desenvolvesse o interesse pela política e pelas questões sociais.
A morte prematura do marido deixou-a em situação muito precária. Na época, a pensão de viúva de capitão do Exército, não era suficiente para o sustento dos filhos. Deu aulas de idiomas e de música, trabalhou de modista, foi balconista e costurou para o Arsenal de Marinha. Finalmente, em 1915, conseguiu ser nomeada professora da Escola Pública, cargo que exerceu até 1930. Trabalhava à noite, nos cursos destinados a comerciárias, operárias e domésticas. Pela primeira vez em sua vida, Leocadia pôde ter contato com as camadas mais pobres da sociedade e isso aguçou sua revolta contra as injustiças sociais.
Na educação dos filhos, sua grande preocupação foi sempre a de incutir-lhes o amor ao trabalho e o sentimento do dever cívico. Procurou mostrar-lhes os aspectos negativos da vida, ensinando-os a enfrentar com altivez a violência e as arbitrariedades dos poderosos e a jamais se curvar ante as injustiças.
A árdua luta pela sobrevivência não fez diminuir seu interesse pelo que ocorria na sociedade e no mundo. Mesmo nos momentos mais difíceis, em sua casa podia faltar pão, mas nunca faltou pelo menos um jornal diário, para acompanhar os acontecimentos políticos, que discutia e comentava com os filhos.
Em 1922, quando seu filho Luiz Carlos Prestes, já oficial do Exército, começa a participar da preparação do primeiro levante tenentista, ela lhe daria todo o apoio, incentivando-o a continuar a luta, após a derrota do movimento.
Em outubro de 1924, com o levante de Santo Ângelo (RS), liderado por Luiz Carlos Prestes, tinha início a grande marcha através do Brasil que duraria até fevereiro de 1927. Foram anos muito duros para as famílias dos participantes da Coluna Prestes. As únicas notícias que recebiam eram as fornecidas pelo governo, sempre as piores possíveis: a Coluna teria sido dizimada, seus chefes exterminados. Mais de uma vez os jornais do Rio abriram manchetes sensacionalistas anunciando a morte de Prestes e de seus companheiros. Leocádia, mesmo sabendo que a vida de Prestes corria perigo, nunca perdeu a coragem e a confiança no filho. Jamais alguém a viu chorar. Sua firmeza impressionava a todos que a conheciam. Em pouco tempo, sua casa tornou-se a Meca das famílias dos demais revolucionários, que a procuravam em busca de alento e consolo.
No início de 1927, com a suspensão da censura à imprensa, os feitos heróicos da Coluna tornaram-se conhecidos da opinião pública, comovendo o país. Luiz Carlos Prestes passou a ser considerado herói nacional – o Cavaleiro da Esperança – e Leocádia Prestes a Mãe de todos os brasileiros. Sua modesta casa de subúrbio fervilhava de amigos, admiradores e políticos de todos os matizes.
Em 1930, os “tenentes”, antigos companheiros de Prestes, em sua grande maioria, aderiram ao movimento armado que conduziu Getúlio Vargas ao poder. O Cavaleiro da Esperança, convidado, recusou-se a participar, considerando que se tratava de uma luta entre grupos oligárquicos, que não traria solução para os graves problemas do país. Luiz Carlos Prestes, em maio daquele ano, lançava manifesto pregando uma revolução popular, agrária e antiimperialista, conforme a orientação do Partido Comunista. A repercussão desse documento na imprensa brasileira e junto à opinião pública seria de total repúdio às suas idéias “subversivas”.
A grande maioria dos admiradores do Cavaleiro da Esperança abandonaria a casa de Leocádia Prestes. Em público, viravam-lhe as costas. Ela reagia com altivez, reiterando a sua solidariedade ao filho. Meses mais tarde, convencida de que ele não poderia retornar ao Brasil tão cedo, licenciou-se do emprego, liquidou a casa e, acompanhada das quatro filhas, partiu para a Argentina, para ficar ao lado do filho. Iniciava-se, então, um longo exílio do qual Leocádia jamais retornaria.
Em Buenos Aires, onde a família se estabeleceu, a vida seria extremamente difícil. Com a crise dos anos 30, tornara-se impossível conseguir trabalho. Poucos dias após a chegada da família, Prestes foi preso e obrigado a asilar-se em Montevidéu. Com isso, perdeu o emprego. Leocádia permaneceu em Buenos Aires, com as filhas, lutando para sobreviverem. Nesse período, ela e as filhas se aproximam das idéias socialistas.
Leocadia e Lygia participando em comício em Oviedo(Espanha), maio de 1936, pela libertação dos presos políticos no Brasil. (Campanha Prestes)
Em 1931, Luiz Carlos Prestes é convidado pelo governo soviético para trabalhar como engenheiro na URSS. Sua família não vacilaria em acompanhá-lo. Às pessoas que se surpreendiam com tal decisão, Leocádia dizia: “se meu filho seguiu este caminho, este é o caminho certo”. Contudo, seu primeiro contato com a sociedade socialista não seria fácil. Arrasada por duas guerras, a União Soviética atravessava enormes dificuldades. Faltava tudo. Para uma senhora de origem burguesa, a realidade soviética suscitava muitas dúvidas. Seu espírito de justiça ajudou-a, porém, a superar as incompreensões iniciais. Pouco a pouco, o entusiasmo do povo soviético a contagiaria. Aos sessenta anos de idade, Leocadia aderia, conscientemente, às idéias marxistas.
Em 1934, Luiz Carlos Prestes era aceito no Partido Comunista. No final do ano, ele partiria para o Brasil, para a luta clandestina contra a ameaça fascista. Iniciava-se, então, para Leocádia, um período de grandes provações. Se, por um lado, ela apoiava integralmente o caminho seguido pelo filho, por outro, só a idéia de perdê-lo a fazia sofrer intensamente. Leocádia sabia que, se o filho fosse preso, provavelmente seria morto.
Em 5 de março de 1936, Luiz Carlos Prestes era preso no Rio de Janeiro, junto com sua companheira Olga Benário. Graças à coragem de Olga, que o protegeu com seu corpo, não conseguiram matá-lo no ato da prisão. Mas sua vida corria perigo iminente. Leocádia aceita encabeçar campanha internacional em defesa da vida de Prestes e de todos os presos políticos no Brasil. Era sua primeira missão política. Tarefa difícil para uma senhora que havia sido, até então, apenas mãe de família e professora de subúrbio. Acompanhada da filha Lygia, ainda em março de 1936, partiria de Moscou, dando início à campanha.
Eram comícios, conferências de imprensa, visitas a jornais e sindicatos, a partidos políticos, parlamentos ou a chefes de governos. Viagens freqüentes e demoradas. Um trabalho extenuante para uma pessoa de sua idade. Com a filha, Leocádia percorreu os principais países europeus, denunciando o terror desencadeado no Brasil, o perigo de morte para os presos políticos, pedindo solidariedade e apoio para sua luta. Em pouco tempo, a campanha se estendeu a outros continentes. Comitês de defesa de Prestes foram criados nos Estados Unidos, na América Latina, na Austrália e na Nova Zelândia. Do mundo inteiro, o governo brasileiro era bombardeado com milhares de cartas, telegramas de protesto, manifestos de toda a sorte, exigindo a libertação de Prestes e de seus companheiros ou, ao menos, o respeito às suas vidas.
Em fins de 1936, com a extradição de Olga Benário para a Alemanha nazista, a campanha se duplica. Surge um movimento paralelo, destinado a salvar a vida de Olga e do bebê que estava para nascer. Leocádia e sua filha vão a Genebra pedir a ajuda da Sociedade das Nações e da Cruz Vermelha Internacional. Graças às gestões, foi possível receber, já em 1937, algumas notícias de Olga e de Anita Leocádia, nascida na prisão em Berlim. Três vezes Leocádia Prestes foi com sua filha à Alemanha, enfrentar a Gestapo e exigir a libertação de Olga e da criança. Delegações de vários países também foram a Berlim, com o mesmo objetivo. Malgrado todos os esforços, não foi possível salvar Olga. Apenas se conseguiu a libertação da pequena Anita Leocádia. Olga seria enviada a um campo de concentração e assassinada em abril de 1942.
Ante a iminência da guerra, Leocádia vê-se forçada a deixar a Europa. Com a filha e a neta, parte para o México, cujo presidente concedera-lhes asilo. No México, a campanha prosseguiria, já então limitada às Américas, pois o resto do mundo estava conflagrado pela guerra, situação que levaria Leocádia a perder o contato com Olga e com as outras filhas que haviam ficado em Moscou. Além da sorte do filho, na prisão, preocupava-a a situação dos seus outros entes queridos, ameaçados pelas bombas nazistas. Mas a coragem e a fé na vitória final não a abandonariam jamais. Quando as hordas nazistas avançavam pela União Soviética, ela costumava dizer aos amigos: “Vocês não conhecem aquele povo! Quem passou tantas privações e sofrimentos para construir o socialismo em seu país, não vai fraquejar agora. Eles são invencíveis!”
Leocádia Prestes não teve a alegria de assistir à vitória final dos povos sobre o nazismo nem à libertação dos presos políticos, no Brasil, em 1945. Após longa enfermidade, veio a falecer no México, no dia 14 de junho de 1943. Sua morte comoveu o povo mexicano, que a admirava muito. Ao velório e ao enterro compareceram milhares de pessoas, inclusive numerosos estrangeiros, fugidos do nazismo e também asilados no México. À beira do seu túmulo, Pablo Neruda leu o poema Dura Elegia, escrito especialmente para aquele momento, no qual ele definiria a importância da vida de Leocádia Prestes com as palavras: “Señora, hiciste grande, más grande, a nuestra América.”
|