A principal tarefa do historiador não é julgar, mas compreender. O que dificulta a compreensão, no entanto, não são apenas nossas convicções apaixonadas, mas também a experiência histórica que as formou. (HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. O breve século XX ? 1914-1991-)
Aqui não há isenção. Mas a compreensão que se apóia numa convicção. Lembro-me de Lucien Febvre que disse que o historiador deve ser um homem de seu tempo e para seu tempo. Portanto, é a compreensão comprometida. Prestes foi seguramente a melhor das representações desse breve século XX, para nós brasileiros, comunistas e partidários da visão de mundo que assumiu, da qual só lamentava não tê-la feito antes, quando liderou as revoltas do tenentismo. Mas é preciso que se diga o seguinte: as lideranças políticas revolucionárias do século vinte, deste breve século vinte, são lideranças forjadas em circunstâncias e ambientes que já não existem mais. Portanto, não haverá como se pensar em se produzir novos líderes do calibre de Prestes. Contudo, muitas de suas virtudes podem e devem ser perseguidos nos marcos de novas injunções, de novos cenários políticos. E o conhecimento de nossos líderes do passado recente ou remoto ajudam-nos a construir os nossos novos dirigentes revolucionários.
Por isso, falar sobre os 20 anos sem Prestes é necessariamente falar da presença de Prestes, no que ela tem de perdas e de legados. Ele vive nas lembranças de todos que o têm como exemplo de dignidade, honradez e seriedade de propósitos. E esses valores se encontram presentes nos momentos de combatividade diante das mais duras adversidades. Construiu um patrimônio político partilhado pelos que, inspirados em suas lutas, agiram com desassombro e perseverança num século marcado, como lembra Hobsbawm, por catástrofes, vitórias e pelo desmoronamento de muitas esperanças. Falei em perdas e elas existem, a começar pela do próprio Prestes, a maior, sem dúvida, e a que mais nos ressentimos, nesses vinte anos. Com ele um pedaço da nossa história de lutas em prol de um mundo melhor para o povo perdeu-se, pois ele não somente as encarnou como esteve à frente dos mais significativos momentos das lutas populares. Mais do que isto, Prestes encarnou a revolução, instrumento e veículo das transformações sociais, e neste sentido perde-se também um intérprete genuíno da vontade revolucionária. O combatente que simbolizou a esperança. Importa pouco se a revolução a que se propunha Prestes encontraria hoje campo fértil nesses tempos de neoliberalismo. O que importa é a evocação da centelha revolucionária. O silêncio da pregação de Prestes, em razão de não mais estar conosco, reduz as expectativas, as aspirações e a vontade de mudar, por um lado, mas, em troca, a lembrança de seu eloqüente discurso nos estimula a pensar que nem tudo está perdido. Mais do que isto, a sonhar que tudo é possível, inclusive e sobretudo o momento da revolução, a promover justiça social e não apenas programas compensatórios de justiça distributiva sem alteração das estruturas de classe. De novo invoco Hobsbawm que no último parágrafo do livro citado diz com propriedade:
Não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe até este ponto... Contudo, uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, (...) é a escuridão.
A advertência de Hobsbawm é de fundo genuinamente marxista, no sentido de que só podemos intervir nos rumos da sociedade conhecendo-a nas suas engrenagens e relações constituídas historicamente. Contudo, não bastam os estudos, o domínio de uma teoria revolucionária, é preciso que a ela se junte um elemento do qual é primordial, embora sozinho ele também não leve necessariamente a lugar algum. Refiro-me à determinação, o desejo, aquele impulso de quem possui um compromisso com as mudanças. Era o caso, sem dúvida, de Prestes. Prestes conheceu revezes, amargou derrotas sofridas pelo povo brasileiro, mas jamais abdicou do ideário que o embalou vida afora. Foi portador dos mais caros e sinceros sentimentos da classe trabalhadora e das forças sociais vivas da sociedade brasileira, por isso sua lembrança incomoda os poderosos e os que se venderam e, com isso, se associaram aos que detém o poder. Todos esses desprezam um dado que para Prestes, e para as pessoas honradas, não tem preço: a consciência como meio mobilizador de uma vontade política, cujo valor ele nunca desmereceu. Em depoimento a Denis de Moraes e Francisco Viana, autores do livro Prestes, lutas e autocríticas, dizia Prestes:
Eu sou acusado de ser um homem que não tem amigos. Um homem sem amigos. Em 30, eu também fiquei isolado. Perdi todos os meus amigos. Um a um. Fui designado pelos tenentes, em Buenos Aires, chefe militar da revolução. Mas acabei ficando um general sem soldados. Pouco a pouco, todos foram passando para o lado de Getúlio e eu acabei completamente isolado. Já estou habituado. Quer dizer: eu tomo os rumos pela minha consciência.
Mas se sua ausência representa uma perda para todos os que estiveram lado a lado com o grande líder nacional brasileiro do século vinte, cultivar a essência de sua trajetória como exemplo de vida é um dever revolucionário e uma tarefa importante a ser empreendida. É por esta razão que se deve falar também em legados. E estes compreendem um conjunto de valores e princípios de modo a formar uma cultura política toda especial. O primeiro e mais importante é o do princípio revolucionário, não negociável e orientador de toda ação política que pôs em prática. O que vale neste princípio não é a forma da revolução, o que importa não é a etapa do processo revolucionário ? dado não desprezível para a análise de uma situação pré revolucionária ? mas irrelevante como elemento constitutivo da visão de mundo de um revolucionário, cujo papel ou dever é pensar revolucionariamente as possibilidade de se promover as transformações radicais. Sobretudo numa realidade social marcada por injustiças que tolhem a plena liberdade do cidadão e dos projetos de inclusão massiva das massas na distribuição dos bens produzidos por quem trabalha e cria a riqueza nacional. Para Prestes a revolução orientou sua visão de mundo. Viver para torná-la uma realidade foi sua luta incessante. Dos legados integrantes dessa cultura política pode-se enumerar pelo menos três. Eles representam uma cultura política centrada em três pilares:
O repúdio às injustiças sociais e a luta para superá-las; O primado do altruísmo, da solidariedade, sobre o individualismo;
A vontade política voltada às transformações como motivação das ações na vida pública.
O primeiro pilar esteve presente no engajamento de Prestes quando ainda jovem oficial do exército. Revoltou-se e liderou ao longo da década de vinte o movimento tenentista;
O segundo acompanhou toda a sua trajetória de vida. O altruísmo e a solidariedade aos companheiros e aos segmentos sociais ligados ao mundo do trabalho sempre deixaram em segundo plano eventuais desejos individuais;
E no que se refere ao terceiro pilar, a postura revolucionária o levou a trilhar uma das mais destacadas vidas no campo das lutas em defesa do ideário socialista;
É por essa razão que a esperança foi intensamente representada pela figura do seu Cavaleiro, a percorrer o Brasil de Norte a Sul, de Leste à Oeste, levando a bandeira da libertação.
Positivamente estes últimos vinte anos nós temos que lamentar perdas, insucessos e o gosto de uma apatia crônica. Nada, portanto, a ver com as expectativas alimentadas em nós pela perspectiva revolucionária, que, no Brasil, tinha em Prestes sua mais completa encarnação. Pablo Neruda, em Confesso que vivi, disse dele:
Nenhum dirigente comunista da América tem uma vida tão trágica e portentosa quanto Luís Carlos Prestes. Herói militar e político do Brasil, sua verdade e sua legenda ultrapassam há muito tempo as restrições ideológicas.
Existem os que sustentam hoje a primazia da reforma sobre a revolução. Os defensores de uma justiça distribuitiva sem tocar nos alicerces estruturais. São os neo reformistas, que embalados pelo ideário pós modernista ocupam os espaços da informação e até os meios acadêmicos. Enquanto isso, ou seja, enquanto esse processo não se descortina, a luta continua nos planos nacionais, porque as razões que levaram Prestes à luta permanecem em nossa formação social, mesmo com a modernização empreendida pela internalização capitalista, que, no entanto, mantêm a desigualdade social como traço permanente dessa sociedade; A história do PCB seria menor não fosse a participação nela de Prestes. Ele unificou três segmentos sociais que estiveram muito ativos nas lutas do povo brasileiro e também na direção do PCB: o operariado, os militares nacionalistas e os profissionais liberais, irmanados em torno das questões de soberania nacional e do internacionalismo. Pôs em prática as orientações do VI Congresso da IC para os países de passado colonial e submetidos à dominação imperialista. Se a concepção etapista da revolução brasileira prevaleceu, esta obedeceu a um contexto do qual ele se vinculou como todas as demais lideranças do movimento comunista internacional; Encarnou os sentimentos mais legítimos e os anseios mais decididos do povo trabalhador brasileiro, ao expressar o repúdio às práticas políticas das classes dominantes e o desprezo pelos falsos líderes populares a pactuarem alianças espúrias de caráter antipopular e de sentido antinacional. Neste sentido, soube combinar o nacionalismo antiimperialista com o internacionalismo.
A perda da identidade combatente, que com o desaparecimento de Prestes tornou-se uma incômoda realidade para os que se propõem a dar continuidade às suas lutas, não deve esmorecer os que se situam nas frentes de combate em prol das transformações sociais. O bom combate precisa ter em alguém uma identidade, um exemplo, e mais do que isso, uma disponibilidade, em condições de arregimentar forças e inspirar os que aspiram por dias melhores;
Toda perda é ao mesmo tempo um lamento e um convite a que se retome a luta e o bom combate. Nada se perde em definitivo, da mesma forma que nada se ganha de maneira absoluta. Perdas e ganhos constituem em processos que precisam ser compreendidos, como assinala Hobsbawm, para que superemos as perdas e renovemos sempre as vitórias.
A velha dialética com suas leis precisas permite que entendamos que os contrários são elementos de uma mesma realidade, logo, as perdas de hoje abrem os caminhos para os ganhos de amanhã. Não temos mais Prestes entre nós, mas o temos na memória e nos ensinamentos que ele deixou para a posteridade.
De Prestes devemos guardar alguns princípios e ensinamentos:
O princípio da coerência ideológica; O ensinamento de que o compromisso com a causa da revolução supera os eventuais interesses individuais; O princípio e o ensinamento do dever cívico, que passa pela defesa da soberania nacional e do internacionalismo; A integridade moral diante das adversidades; A capacidade de contrariar maiorias, tendências dominantes, em nome da determinação da luta.
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